As crianças de hoje crescem entre dois mundos: o real, feito de encontros, afetos e frustrações; e o digital, que promete estímulos infinitos, mas muitas vezes entrega solidão, consumo e ividade. Com a chegada de brinquedos “inteligentes”, assistentes virtuais e plataformas digitais, um novo tipo de infância está sendo moldado — uma infância conectada, sim, mas cada vez mais desconectada da experiência simbólica e do brincar livre.
Criança e celular
Brincar, para uma criança, nunca foi só atempo. É como ela entende o mundo, elabora suas emoções e constrói sua identidade. Mas quando tudo já vem pronto, um brinquedo que responde, um jogo que dita as regras, um app que chama mais atenção que qualquer história contada, o espaço para imaginar, criar e até lidar com o tédio vai desaparecendo.
Freud já dizia, lá em 1908, que o brincar é como a criança organiza seus desejos e angústias. É o seu jeito de dar sentido às coisas que sente, mas ainda não sabe nomear. Quando o brinquedo “brinca por ela”, o jogo simbólico se perde e no lugar dele, surgem sinais cada vez mais comuns: ansiedade, irritabilidade, dificuldade de esperar, falta de interesse em relações reais.
As pesquisas
Pesquisadoras como Bernardino e Kupfer (2008) observam que o excesso de objetos prontos no cotidiano infantil impede que a criança crie, sozinha, aquilo que é essencial para seu crescimento emocional: o famoso “objeto transicional”, aquele paninho, ursinho ou desenho inventado que simboliza a ausência de alguém importante. Sem esse exercício simbólico, a criança não aprende a lidar com a falta, e fica presa à lógica do “quero agora”. O desejo vira consumo. O brincar vira clique.
E o papel do adulto nisso tudo? Crucial. Pais, professores, cuidadores, todos têm a função simbólica de mediar a entrada da criança no mundo. Como nos lembra o psicanalista Jacques Lacan, é pela relação com o outro que o sujeito se constitui. Ou seja: é olhando, escutando e sendo reconhecida que a criança aprende a desejar, a esperar, a imaginar.
Ausência e presença
A ausência dessa presença, ou uma presença que está sempre mediada por telas , deixa marcas. A criança pode até parecer “ocupada” e “inteligente”, interagindo com robôs e apps, mas muitas vezes está solitária, sem saber como nomear o que sente. Ela pode até achar que controla o jogo, mas como alerta Levin, (2007) é o jogo que está controlando ela.
Em tempos de inteligência artificial, não basta proibir telas nem demonizar a tecnologia. O desafio é outro: resgatar o sentido do brincar como uma linguagem legítima da infância. Permitir que a criança sinta, espere, invente. Que brinque com o tédio, com a ausência, com a imaginação.
Tecnologia e ética
Mais do que uma questão educacional, isso é um gesto ético. É reconhecer que uma infância saudável não se constrói com excesso de estímulo, mas com espaço para criar, e adultos disponíveis para escutar. A psicanálise nos convida a prestar atenção naquilo que a criança ainda não sabe dizer em palavras, mas expressa nos seus jogos, nos seus silêncios, nos seus desenhos e repetições.
Escutar uma criança enquanto brinca pode parecer simples. Mas é ali que mora a chance de reconstruir vínculos, resgatar sentidos e devolver à infância o que é dela por direito: o tempo, o desejo, o faz de conta e o direito de ser criança, de verdade.
A autora é escritora, pedagoga, e acadêmica de psicologia